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Essay

Homens do Mato

Entre Medalhas e o Genocídio Negro em Mato Grosso

Como a linguagem e a simbologia que constroem a narrativa de negros no Brasil como “outro”, criam as estruturas do racismo que sustentam uma campanha genocida contra a população preta em todo o país.

  • Nina Maria de Meira Borba
Rio de Janeiro, 3th December 2015: Hundreds of people staged a march in Madureira district in the suburb of Rio to protest against the Military Police of Rio de Janeiro (PMERJ) for the murder of five young black men. (Photo by Luiz Souza/NurPhoto) (Photo by NurPhoto/NurPhoto via Getty Images)

Em dezembro de 2021, Roberto Martins de Melo Junior, foi morto sob custódia da Polícia Militar de Mato Grosso (PMMT). O jovem negro de dezoito anos morreu durante uma abordagem policial em Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso, no Ribeirão do Lipa, uma área de baixa renda a apenas seis quilômetros do Santa Rosa, o bairro mais rico da cidade. Uma patrulha policial assassinou Roberto Martins, também conhecido como Juninho, depois de tentar abordá-lo, enquanto estava na sua motocicleta, na companhia de outros jovens. A vítima e seus amigos estavam se divertindo enquanto praticavam uma série de manobras , com suas motocicletas, conhecida como “dar grau”, em uma estrada de pouco tráfego. Apesar da prática ser uma infração de trânsito, ela é amplamente difundida no Brasil. Muitos deles não tinham carteira de motorista e fugiram da polícia. De acordo com o jornal da região, Olhar Direto, “Para tentar se esconder, Roberto teria entrado em um espaço escuro entre duas casas. Teria sido nesse local que ele se deitou ao lado da motocicleta, onde teria sido agredido e posteriormente morto com um tiro na região do peito.” As informações foram corroboradas por moradores da região que relataram ter visto policiais batendo em alguém nas proximidades.

A família e os amigos de Roberto manifestaram, repetidas vezes, que ele tinha dois empregos, não possuía nenhum vínculo com atividades criminosas ou facções, e não estava armado. Mas todas as informações foram ignoradas. Enquanto isso, a polícia alegou que Roberto apontou uma pistola, calibre 38, para eles. A polícia não seguiu seus próprios procedimentos ao lidar com a suposta evidência. O processo padrão em que a arma é recolhida pela Polícia Civil ou pelo Instituto Médico Legal (IML) não foi seguido; a arma foi retirada pelos policiais militares e entregue ao 10º Batalhão da Polícia Militar (PMMT). O assassinato de Roberto não foi investigado até hoje e, provavelmente, nunca será.

Imagem 1. Foto de Roberto Martins de Melo Junior. Imagem retirada das mídias sociais e compartilhada com permissão dos familiares de Roberto.

A história de Roberto está longe de ser uma exceção no Brasil. Relatos de assassinatos perpetrados por policiais contra jovens negros, fazem parte do dia-dia dos noticiários brasileiros. Em um país em que 56,1% da população se declara Afrodescendente, um jovem negro é morto a cada 23 minutos. Na Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, uma pessoa negra é assassinada, pela polícia, a cada 4 horas. O horror da violência policial contra jovens negros está em todo o Brasil.2

Em estados como São Paulo e Rio de Janeiro, a brutalidade se torna notícia nacional, enquanto os eventos que ocorrem no interior do país continuam sendo negligenciados,  mesmo que muitos desses lugares tenham o maior número de mortes causadas pela polícia. Em 2020, o Estado do Amapá registrou a maior taxa de morte por intervenção policial do país, 13 por 100.000 habitantes (1,3%), enquanto a média nacional foi de 3 por 100.000 habitantes (0,3%).3

Localizado na região centro-oeste do país, o estado de Mato Grosso não fica muito atrás. Sendo o 16º estado mais populoso do Brasil, ocupa a 8ª posição em mortes resultantes de intervenção policial, com números também acima da média nacional. De acordo com o Monitor da Violência sobre Letalidade Policial e Vitimização, publicado em 2021, o maior crescimento de mortes perpetradas por policiais em atividade no Brasil, ocorreu em Mato Grosso, com um aumento de 83% entre 2019 e 2020.

“Genocídio”, um termo cunhado pelo advogado judeu polonês Raphael Lemkin e classificado como crime punível pelas Nações Unidas desde 1948, é definido como uma série de atos cometidos com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. O silenciamento da mídia nacional em relação ao que só pode ser compreendido como genocídio negro tem possibilitado a impunidade estatal. Isso criou um ambiente de permissividade para a brutalidade policial. Mas isso não é tudo. O público tem fechado os olhos para o que podemos chamar de violência simbólica e discursiva, um conjunto de ideias, imagens e práticas que normalizam e institucionalizam a noção de que os corpos negros são inerentemente estranhos, hostis, ameaçadores e violentos. A linguagem e os símbolos que constroem os negros como “o outro”, criam as estruturas do racismo que tornam possível e sustentam uma campanha genocida contra a população preta, em todas as regiões do Brasil.

Imagem 2. Fotografia das medalhas Homens do Mato, Polícia Militar do Estado de Mato Grosso.

Apenas seis dias após o assassinato de Roberto, a Polícia Militar de Mato Grosso (PMMT) conferiu condecorações a 166 autoridades civis e militares. Naquela noite, foram concedidas sete distintas honrarias. Entre elas, a mais célebre, a Medalha Homens do Mato, a mais alta honraria concedida pela PMMT. O que é crucial entender aqui, em relação à violência contra a população negra em Mato Grosso, é que a PMMT nomeou essa medalha em homenagem à primeira instituição policial do estado, fundada em 1835 para capturar indivíduos que fugiam da escravidão. Além disso, essa instituição também era responsável pela destruição dos quilombos, comunidades formadas por homens, mulheres e crianças que conseguiram escapar da servidão. 

 

Quilombos vs Homens do Mato: Um Legado de Resistência Negra e Repressão em Mato Grosso.

A celebração oficial da polícia com o nome de uma patrulha encarregada em perseguir escravizados, demonstra como, estruturalmente, tal violência faz parte da formação e manutenção da estrutura policial de Mato Grosso. O recurso a esse símbolo é tão significativo para a PMMT que seus altos funcionários adotaram o nome para sua corrida anual, sua orquestra sinfônica e sua revista acadêmica sobre segurança pública. Sua intenção está claramente em exibição por meio do logotipo da revista, que mostra uma espécie de brasão histórico com figuras do Brasil do século XIX. A imagem retrata o 1º Batalhão da PMMT posicionado entre um homem indígena e um bandeirante, uma figura que simboliza expedicionários que viajaram de São Paulo para o interior do Brasil em busca de ouro e indígenas para escravizar, deixando para trás um rastro de sangue e destruição.

Imagem 3.Homens Do Mato - Revista Científica de Pesquisa Em Segurança Pública 22, no. 2 (2022), http://revistacientifica.pm.mt.gov.br/ojs/index.php/semanal/index

O logotipo ilustra a narrativa dominante de glorificação das imagens desses homens, enquanto silencia e desconsidera a história e a existência negra no Estado, que, apesar da violência sistemática e da crueldade de seu contexto, encontraram em suas comunidades um lugar para existir e resistir. Algumas dessas comunidades eram os quilombos, microssociedades independentes, formadas por africanos e afrodescendentes que fugiram de seus escravizadores.4

Somente em Mato Grosso, há registros de pelo menos vinte quilombos diferentes, a maioria habitada por africanos, afrodescendentes e indígenas. A existência de sociedades formadas e governadas por indivíduos negros, com diferentes sistemas de poder, comércio e defesa, era extremamente perigosa para a perpetuação do status quo da sociedade escravista brasileira, pois desafiava a narrativa colonialista branca que atribuía às populações africanas e afrodescendentes no Brasil, a ideia de primitivismo, selvageria e ignorância. Almir Balieiro argumenta que o título dado à Instituição Homens do Mato, ocorreu devido às suas principais atribuições, quais sejam: a captura de pessoas escravizadas e a destruição dos quilombos, por meio de táticas de guerrilha.5

Desde a sua criação em 1835, os “Homens do Mato” proporcionavam dinheiro, poder, proteção e ascensão social a homens pobres e livres que não se encaixavam na estrutura social dicotômica de escravizados e escravizadores, que compunha o sistema escravista brasileiro. De importância crítica, a lei que criou a instituição prometia “recompensas pela captura de escravos”. Seus membros eram, portanto, a linha de frente para a manutenção do sistema de escravidão.6

Eles eram as ferramentas utilizadas, pelo Estado, para impor a violência e reescravização a indivíduos negros, que haviam se libertado dos horrores da escravidão, ao fugir. Em 1844, a Corporação foi renomeada Corpo Municipal Permanente e passou por diferentes títulos e nomes até 1977, quando se tornou a “Polícia Militar do Estado de Mato Grosso” ou PMMT.

 

Legado de Opressão e Violência: Policiamento de Corpos Negros em Todas as Américas

Instituições policiais que foram criadas para restringir corpos negros e acalmar o medo dos escravizadores estão presentes em toda a América. No decreto que fundou a primeira instituição policial de São Paulo, os artigos 9 e 11, regulavam as questões financeiras relacionadas à destruição dos quilombos e a captura de pessoas escravizadas, semelhantes às que vemos em Mato Grosso.

“Art 9º Quando o serviço fôr para atacar quilombos, salteadores, ou qualquer outro, em que haja perigo de vida, a diaria será de valor dobrado, e mesmo triplicado, a juizo da Autoridade que determinar o serviço e sendo este requerido por algum senhor de escravos, serão por elles pagos os dias de serviço, segundo o arbitramento acima, assim como o rerão por qualquer senhor, quando algum escravo fôr preso por qualquer Guarda.”

“Art 11º Para indemnizar as Camaras de taes despezas serão applicados a seus cofres as quantias que os senhores de escravos são obrigados a pagarr isso fiquem desonerados da obrigação, imposta pelo art 9º devendo as Camaras por Posturas marcar o quantitativo dellas, que será de um valor, quando fôr prisão sem escolta: de dobrado valor se com escolta: de triplicado, sem em ataque a quilombos.”

Histórias semelhantes são encontradas em outros países das Américas. Nos Estados Unidos, as instituições policiais também herdaram e perpetuaram o modus operandi de direcionar seus esforços para corpos negros. Isso começou em 1704, com a implementação das primeiras patrulhas que capturavam escravizados na Carolina do Sul.

Diferentes instituições policiais dialogam com sua história como mantenedoras do sistema escravagista, de formas variadas. No entanto, a extensão da violência simbólica e discursiva perpetrada pela Polícia Militar de Mato Grosso (PMMT) se destaca em comparação com outros estados brasileiros. Em outros lugares, as autoridades adotaram medalhas com personagens duvidosos, senhores de escravizados e oficiais conhecidos por sua história de violência. Por exemplo, a Polícia Militar de São Paulo (PMSP) intitulou uma de suas medalhas Brigadeiro Tobias de Aguiar, um oligarca, político, proprietário de terras e senhor de escravos em Sorocaba, São Paulo. Em homenagem a um personagem sangrento de um passado mais recente, a Polícia Militar do Pará (PMPA) intitulou uma de suas medalhas Coronel Fontoura, o comandante que liderou o massacre contra os habitantes de Canudos.7

No entanto, a homenagem explícita a uma instituição responsável pela reescravização e manutenção da escravidão, ocorre apenas em Mato Grosso. A exaltação dos Homens do Mato como dignos de honra e prestígio, entrelaçada com o proposital silenciamento de suas ações, revela como a violência a corpos negros, especialmente jovens negros, é vista como uma herança a se orgulhar pelos que governam as instituições do Estado de Mato Grosso.

Nesse contexto, não é coincidência que a lei que estabeleceu o prêmio Homens do Mato, em 1984, tenha sido obra da ditadura militar brasileira (1964-1985). No entanto, como observado por Jaime Amparo Alves, o modus operandi da ditadura militar, que via na eliminação de “inimigos internos” a forma para pacificação social, ainda persiste até os dias atuais, na interação entre a Polícia Militar e as comunidades de baixa renda.

A necropolítica do Estado brasileiro contra a juventude negra não é apenas resultado do legado da escravidão. O genocídio da população preta no Brasil é um Estado de violência que  se reorganiza em discursos e ações políticas, que marginalizam as vidas negras que vivem em áreas de baixa renda, alegando travar “guerras” contra o crime e as drogas.8

Esse papel tem dado à PMMT uma imensa apreciação aos olhos da classe média e elite da região. A violência perpetrada pela polícia, contra a juventude negra, muitas vezes, é desconsiderada como um preço necessário a se pagar pela posição geográfica de fronteira que se encontra Mato Grosso, e sua exposição ao comércio regional de drogas. No entanto, apesar dos perigos do ofício envolvendo o tráfico, em 2020, 130 civis foram assassinados para cada policial morto no estado.9

Em 2023, o Promotor do Estado, Vinícius Gahyva Martins, deu uma declaração criticando o número de abordagens policiais que resultaram em morte em Mato Grosso. Ele afirmou que, em Cuiabá e sua região metropolitana, um em cada quatro homicídios é causado por intervenção policial.

O assassinato de Roberto, infelizmente, não foi um caso isolado, mas parte de um padrão de racismo e impunidade que permite às autoridades tratarem os corpos de jovens negros como uma ameaça. Em 2017, João Vitor Alves de Oliveira, de 20 anos, e Hugo Vinicius da Silva Salomé, de 19 anos, foram vistos, pela última vez, sendo levados por um carro da polícia; dez dias depois, seus corpos foram encontrados enterrados e embrulhados em sacos plásticos. Em 2020, Jonathan da Silva Rosário, de 23 anos, em Chapada dos Guimarães, foi ordenado a parar por dois policiais, enquanto pilotava sua motocicleta, ao retornar da casa de sua namorada; quando ele não parou, os policiais atiraram. Em 2023, Pablo Ferreira de Lima, de 25 anos estava tendo um episódio de psicose quando sua mãe chamou os policiais para ajudar a contê-lo. Os policiais dispararam seis vezes contra o jovem, porque ele estava com uma picareta na sua mão.10

Imagem 4.Foto de Pablo Ferreira de Carvalho da Silva, "Bicampeão da Superliga Cuiabana de vôlei de quadra!" 8 dezembro 2019. Foto: Redes sociais.

“Bandido bom é bandido morto”: Esquadrões da Morte e o discurso de heróis contra o crime em Mato Grosso

O ex-presidente Jair Messias Bolsonaro tinha como um de seus slogans mais famosos a frase: “Bandido bom é bandido morto.” A direita brasileira, orgulhosamente, adotou essa expressão, que tem sido repetida pelos seguidores de Bolsonaro, quando discussões sobre o sistema criminal no Brasil é abordado. Em um país com problemas graves e reais relacionados a roubos, assaltos e mortes violentas ligadas à atividades criminosas, o medo leva muitos cidadãos a recorrerem ao discurso simplista de “heróis” e “vilões”, enquanto a realidade do crime no Brasil é complexa, envolvendo forças locais, nacionais e até internacionais.

No entanto, o discurso da Polícia Militar também ampara os policiais a agir por conta própria e “fazer justiça” com as próprias mãos. Eles, frequentemente, agem como polícia, promotor e juiz, e decidem quando a sentença deve ser a prisão ou a morte. Em 26 de julho de 2022, a imprensa local publicou um artigo sobre Manoel Santos da Silva, um policial preso por criar um esquadrão da morte, em Brasnorte, uma cidade do interior de Mato Grosso. Segundo a reportagem, Manoel se vangloriava de que ninguém havia matado mais “vagabundos” que ele. Em 2020, Manoel e outros três homens mataram Caíque da Conceição de Souza, em uma emboscada, com vários tiros, porque Manoel não concordava com a decisão judicial de soltar Caíque, após ter sido detido com drogas e munições.

De forma similar, em 2022, a Polícia Militar de Mato Grosso esteve sob investigação, em relação a um esquadrão da morte formado por 62 policiais militares. De acordo com as investigações, o grupo atuou por três anos, de 2017 a 2020, e assassinou 23 civis. As vítimas eram atraídas para uma emboscada, por um informante que as chamava para participar de um suposto assalto. Quando as vítimas chegavam ao local combinado, eram assassinadas pelos policiais, sob a falsa alegação de confronto. O caso ainda está em investigação, os suspeitos estão em liberdade e continuam trabalhando como policiais.

Por sua vez, a Polícia Militar emitiu uma nota no portal de notícias local, Midia News, afirmando que “é importante enfatizar que a manutenção da segurança e da ordem pública exige uma postura combativa e, nesse empenho, sempre enfrentaremos o crime e defenderemos nossos heróis”. A narrativa dos heróis contra o crime, em Mato Grosso, poupou a Polícia Militar de qualquer crítica, por mais grave que seja a situação. Desde sua fundação em 1748, o governo de Mato Grosso tem implementado esse discurso e simbologia de mãos dadas com a violência contra a população negra, que continua sendo silenciada, negligenciada e desrespeitada.

Os grupos de extermínio formados por policiais têm uma longa história no Brasil e em Mato Grosso. Tito Lívio de Caravellas, por exemplo, teve uma extensa história na PMMT, alcançando o mais alto posto na Corporação. No entanto, de 1984 a 1986, seu nome encontrava-se nas notícias locais, juntamente com outros três policiais de diferentes patentes. Eles foram investigados pelo sequestro e assassinato, em 26 de agosto de 1983, de quatro menores de idade conhecidos como Nhonhozinho, Milsão, Milinho e Branco. Em 1984, o juiz responsável pelo caso, Antonio Humberto Cesar, afirmou que “a investigação não foi arquivada pela polícia, mas caiu no esquecimento em alguma gaveta”.11

Em 1986, o caso voltou às notícias devido à reabertura do inquérito, pelo Procurador-Geral de Mato Grosso, Leônidas Duarte Monteiro, como parte de uma investigação mais ampla, sobre a existência de grupos de extermínio ligados à Polícia Militar de Mato Grosso (PMMT). Conforme observou um jornalista na época, “As mães nunca mais viram os meninos, mas os policiais ainda estão em serviço. Alguns até foram promovidos”. Um deles foi Caravellas, que foi logo elevado da patente de tenente, para capitão.12

Em setembro de 1986, o Capitão Caravellas divulgou uma nova iniciativa da Polícia Militar de Mato Grosso, uma patrulha noturna intitulada Homens do Mato. A operação consistia em policiamento ostensivo, em áreas de baixa renda, em Cuiabá e arredores. O foco era a inspeção de veículos que transitavam por essas áreas, registro de pontos críticos e “proteção” dos bairros contra atos criminosos A violência discursiva e ativa é, mais uma vez, evidente aqui. A caça a população negra não ocorre mais na natureza, como o nome Homens do Mato sugere, mas em áreas de baixa renda, espaços ocupados predominantemente por comunidades pretas. 13

Jaime Amparo Alves argumenta que “O corpo negro aparece, portanto, como o catalizador de um tipo de morte (violência homicida) que incide de maneira preferencial, embora não exclusiva, sobre os negros, pavimentando o caminho para a vitimização de outros grupos. A vitimização branca seria, nesse sentido, uma consequência da banalização da morte negra.” Há uma contínua regeneração do necropoder no Estado Brasileiro, que tem como seu principal alvo a população preta. Por intermédio de suas transformações, o necropoder dialoga com seu passado de diferentes formas, em um ciclo de violência que permite algumas mudanças, mas continua tendo o mesmo alvo.14

A homenagem prestada pela Polícia Militar aos Homens do Mato e o apoio integral de todas as autoridade estatais, que orgulhosamente ostentam tal “honraria”, perpetuam, por meio de simbolismo e discurso, a narrativa que caracteriza a história e as vidas pretas em Mato Grosso, enquadrando-as como inerentemente insignificantes e dignas apenas de tratamento violento. Em 2023, a maior honra concedida pela Polícia Militar do Mato Grosso continua sendo uma homenagem à Instituição que reescravizou, assassinou e violou corpos da mesma raça dos jovens que estão sendo mortos a cada 23 minutos no País. A marginalização e o silenciamento da história negra estão diretamente relacionados à banalização da existência dos grupos afrodescendentes; o silêncio sobre os eventos passados e presentes não é por acaso, mas parte de um sistema que intencionalmente tem no ato do silenciamento, uma ferramenta de permissividade que admite o genocídio negro no Brasil. No entanto, os jovens apresentados neste texto são mais do que um número, uma casualidade, um “inocente” ou um “criminoso”. Eles eram irmãos, amigos e filhos.

A declaração da irmã de Roberto Martins de Melo Junior, Mariana Bento, é: “Estou buscando justiça para o meu irmão.” Cada jovem apresentado aqui significava o mundo para alguém. Esse mundo foi despedaçado por um sistema que tem a morte como sua base, um Estado necropolítico que construiu e continua perpetuando seu poder na “guerra contra o crime” e uma Instituição que, por meio de uma simbologia histórica de violência, opressão e morte, vê os corpos de jovens negros como alvo.

 

Nina Maria de Meira Borba é Doutoranda no Departamente de História da Universidade de Stanford.

 

 

 

Works Cited

 

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footnotes

  • 1   Fabiana Mendes e Pedro Coutinho, “Amigos Afirmam Que Jovem Morto Pela PM Tinha Dois Empregos e Não Estava Armado,” Olhar Direto, 15 Dezembro de 2021, https://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=497170&noticia=amigos-afirmam-que-jovem-morto-pela-pm-tinha-dois-empregos-e-nao-estava-armado&edicao=3.
  • 2   Senado Federal, CPI do Assassinato de Jovens: Relatório final § (2016), 32; “Uma Pessoa Negra é Morta Pela Polícia a Cada Quatro Horas,” Rede de Observatórios de Segurança, 14 Dezembro de 2021, http://observatorioseguranca.com.br/.
  • 3   Samira Bueno, David Marques, e Dennis Pacheco, As Mortes Decorrentes de Intervenção Policial No Brasil Em 2020 (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020), 61.
  • 4     Os Quilombos foram um fenômeno brasileiro semelhante aos Palenques, Cumbes, Maroons e Grand Marronage que ocorreram nas Américas espanhola, inglesa e francesa.
  • 5   Almir Balieiro, “Dos Homens Do Mato Aos Homens e Mulheres Da Cidade: Por Uma Escrita Dentro Da Nova História Sobre a Trajetória Da Polícia Militar Em Mato Grosso,” Revista Territórios e Fronteiras 2, no. 2 (2009), 346.
  • 6   Além dos vencimentos de que trata o artigo 2°, ficam pertencendo aos indivíduos deste Corpo, as tomadas de escravo estipulado no antigo regimento de Capitão do Mato, que lhes serão pagos pontualmente pelos respectivos senhores.” “Lei Provincial nº 30, de 05 de Setembro de 1835.” Assembleia Legislativa  do Estado de Mato Grosso Secretaria de Serviços Legislativos, https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-30-1835.pdf.
  • 7     José Eduardo de Azevedo analisa como os objetivos de Brigadeiro Tobias de Aguiar influenciaram profundamente a formação da Polícia Militar de São Paulo como uma instituição que defendia os interesses da sociedade escravocrata em sua região. Veja: Jose Eduardo de Azevedo, “Polícia Militar: A Mecânica Do Poder,” Revista Sociologia Jurídica, no. 7 (2008), https://sociologiajuridicadotnet.wordpress.com/policia-militar-a-mecanica-do-poder/.
  • 8   O princípio da necropolítica é a mecanização da morte e a subjugação da vida para adquirir e manter o poder através de uma estimulação contínua de um Estado de guerra e exceção, justificado pela oposição contra um inimigo comum. Veja: Achille Mbembe, Necropolitics (Durham and London: Duke University Press, 2019), 82.
  • 9     Samira Bueno, David Marques, e Dennis Pacheco, As Mortes Decorrentes de Intervenção Policial No Brasil Em 2020 (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020), 130.
  • 10   “Jovens Que Estavam Desaparecidos São Achados Mortos Em Sacos Em MT,” G1 Mato Grosso, 20 Janeiro de 2017; Kessillen Lopes, “Jovem é Morto Por PMs Na Rua Em MT; Família Cita Despreparo e Faz Ato Em Protesto e Polícia Alega Que Ele Não Parou Moto,” G1 Mato Grosso, 1 de Outubro de 2020.
  • 11   “Sequestro de Menores Ainda Sem Solução,” Jornal Do Dia, 21 de Outubro de 1984, 8.
  • 12   “Crimes Do ‘Esquadrão’ Serão Apurados Em Oito Inquéritos,” Jornal Do Dia, 17 de Abril de 1986, 4-5; “Inquérito Errado,” Jornal do Dia, 18 de Abril de 1986, 3.
  • 13     “Policia Militar Inicia Comemorações,” Diário Oficial do Estado de Mato Grosso, 1 de Setembro de 1986, 1.
  • 14     Jaime Amparo Alves, “Topografias Da Violência: Necropoder e Governamentalidade Espacial Em São Paulo,” Revista Do Departamento de Geografia – USP 22 (2011): 123.
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